Fazia 30 anos que eu queria ir para o Campo Base do Everest.” É assim que Cristiane Kolesnikovas (52), presidente da Associação R3 Animal, começa a narrar a experiência de sua expedição para o Campo Base do Everest.


A inspiração veio de um amigo da família. Em 1991 ele fez parte da primeira expedição brasileira ao Everest. O que chamou a atenção de Cristiane, na época, foram as fotos. Em 1991 não se tirava foto com a facilidade de hoje, nem sequer se conhecia um lugar do mundo com uma simples pesquisa na internet.


“Quando nosso amigo voltou com as fotos, eu pensei: um dia eu vou para lá.”


E esse dia chegou em março de 2022, bem no início da temporada de expedições nas montanhas do Everest, que vai até novembro.

 

Cristiane não foi sozinha. O parceiro de viagem foi o filho Léo (25), além dos 19
aventureiros de todos os cantos do país que acompanhariam a 71ª expedição de Manoel Morgado para o Campo Base do Everest. Para quase a totalidade do grupo, o primeiro trekking em altitude.

Primeira parada: Kathmandu


A primeira parada de quem vai ao Everest é a capital do Nepal, Kathmandu. A cidade produz uma grande impressão por qualquer um que passe por ela. Com Cristiane não foi diferente. Mesmo que já conhecesse a Tailândia e considerasse Bangkok o lugar mais caótico que conhecia, ela mudou de opinião.


Foi a cidade mais caótica que conheci. Não tem semáforos. A gente chega na
cidade e já vê a diferença. Você vê os extremos. Há oásis de riqueza e em volta dele pobreza. É um choque cultural, para a gente que mora aqui [em Florianópolis].”


Segunda parada: Lukla


De Kathmandu, a segunda parada é em Lukla. Esse é o lugar por que todos os
aventureiros passam, e já está a 2.800 metros de altitude.


O aeroporto de Lukla é conhecido como o mais perigoso do mundo, apesar de não constar acidentes por lá há mais de dez anos, de acordo com Cristiane. Localizado no meio das montanhas, a pista só comporta aviões pequenos. Os pousos são na subida, e as decolagens na descida.


É lá que o trekking de 14 dias começa.


O trekking


O trekking que Cristiane e o grupo de aventureiros encarou começou em Lukla, a 2.800 metros, e foi até o Campo Base do Everest, a 5.364 metros de altitude.


Mas esse não foi o ponto mais alto que a equipe atingiu. Do Campo Base, o grupo também foi ao Kala Patthar, a nada menos do que 5.555 metros.

Para a caminhada, toda a equipe se preparou fisicamente. Cristiane é corredora e manteve-se firme na rotina de treinos nas areias da Barra da Lagoa, em Florianópolis. Os demais aventureiros se preparam com modalidades desde caminhadas até opções mais pesadas, como musculação.


Se aclimatando à montanha


Após a chegada a Lukla, a caminhada começa. Nos primeiros dias, adaptação é a palavra de ordem. É preciso adaptar a respiração, adaptar a subida ao ritmo do grupo, adaptar-se à temperatura, à comida, às habitações, à higiene e por aí vai… Tudo é um desafio!


Para quem acha que caminhar na altitude é o mesmo que dar um passeio à beira-mar, não se engane, pois a coisa pode ser mais complicada:


“Não temos noção do que é fazer exercício na altitude. Tinham me falado: passos
curtos e devagar. A gente pensa que tudo bem, é só caminhar devagar. Mas não é devagar, é muito devagar. Um pé não pode passar da metade do outro nos
passos. Muito devagar e respirando.”

Respirar na altitude é outro desafio à parte. À medida que vai subindo, o ar vai ficando rarefeito. Para quem, como Cristiane, viveu sempre ao nível do mar, a sensação inicial é de cansaço, falta de ar e respiração ofegante. Imagina fazendo o trekking?


“Até 3.500 metros a gente ainda consegue respirar pelo nariz. A partir disso, você
respira pela boca, porque não consegue pegar ar suficiente pelo nariz. A 5.000
metros temos 50% do oxigênio que temos ao nível do mar. Por isso que cansamos muito. Resseca bastante a região da garganta. “


Isso leva a uma perda maior de água, que rapidamente pode produzir uma severa desidratação. Por isso, nas alturas, a recomendação é tomar ao menos quatro litros de líquido por dia. Acha difícil tomar sequer dois litros por dia por aqui? Pois é. Lá você vai precisar de cada gota.


A rotina na montanha


Para quem vai pela primeira vez ao Everest a adaptação tem que acontecer junto com a caminhada. Por isso, ritmo é o que define os dias de um trekking no Everest. A rotina inicia bem cedo:


“Acordávamos sempre às 6 horas da manhã, tomávamos café, arrumávamos a
duffle bag e, em torno das 7 horas, começava a caminhada. Levávamos um lanche para fazer no meio do caminho. O trecho ia até a próxima parada. Chegávamos sempre em torno de meio-dia a 15 horas e almoçávamos. Então parávamos. Tínhamos atividades extras nesses locais, mas elas eram opcionais.”


Com caminhadas de três a seis horas diárias, a quilometragem variou de 6 km, no primeiro dia montanha acima, a 18 km, no último dia montanha abaixo.


Durante a subida, há todo um cuidado em relação aos efeitos da mudança rápida de altitude sobre o corpo humano, que podem ser graves e até levar à morte:


“Subíamos 400 metros por dia. Dormíamos dois dias nesses 400 metros a mais para se adaptar à altitude, para não sofrer do mal de altitude. Se você subir muito rápido, pode sofrer do mal de altitude. Então, fazíamos os 400 metros, chegávamos no lodge, fazíamos atividades por ali, mas tínhamos que dormir duas noites naquela altitude. Por isso, a subida demorou 10 dias e a descida durou menos de quatro dias.”


A equipe de 20 aventureiros foi acompanhada em todo o trajeto por dois guias, seis sherpas e dez carregadores.


Os guias iam com o grupo. O grupo de Cristiane tinha gente de 18 a 66 anos. Como o ritmo de caminhada variava muito, o grupo se subdividia. Era comum que os mais novos fossem na frente, os de meia-idade no meio, e os mais velhos atrás. Uma das regras é que nenhum aventureiro fique sozinho na trilha, por questão de segurança. Então, cada pequeno grupo que se formava tinha ao menos um sherpa o acompanhando.

Já os carregadores iam na frente e, mesmo o peso de duas duffles de 20 kg cada uma nas costas, chegavam bem antes do grupo na parada.

Hospedagem


O grupo passou todas as noites em lodges, que ficam em pequenos vilarejos ao longo da caminhada. Há lodges mais confortáveis e menos confortáveis, considera Cristiane, sobretudo quando comparamos com nossos padrões.


Higiene também costuma produzir um choque nos aventureiros. Nem sempre o banheiro fica no quarto. É bem comum que seja fora. Já o sanitário pode ser um buraco no chão, tal como a cultura local. Você nem sempre encontrará tudo limpinho e nem todos os dias será possível tomar banho.


“Ficamos 3 dias sem tomar banho. Não tem água suficiente para todo mundo,
principalmente próximo ao Campo Base, que é muito alto. Só no primeiro e no último dia tínhamos banheiro no quarto. Todos os outros dias tivemos banheiro fora. Alguns lugares tinham banho quente, com aquecedor a gás. Mas, como o gás sobe nas costas dos iaques ou dos carregadores, é um recurso caro. Então, quem quisesse tinha que pagar à parte. Com o lencinho a gente dava um jeito.”


O clima ajuda. Como o ar é frio e seco, a transpiração é pouca. “O corpo não sua tanto. No final, você nem pensa mais. Ninguém se importava.”

Alimentação


Todo mundo levou muita castanha, frutas secas e barras de proteína, que fazem parte da alimentação ideal para a caminhada. Além desses lanches, as refeições principais se concentravam nos lodges, com café da manhã, almoço e jantar.


A qualidade da alimentação variava de parada em parada, mas dentro de um cardápio mais ou menos parecido em todos os pontos do trajeto. Cristiane conta que o grupo tomava certos cuidados.


“A água a gente tinha que esterilizar, para não ter problemas de contaminação.
Também evitávamos comer carne, pelo mesmo motivo. Nossa proteína era o ovo.
Em alguns lugares também tinha atum enlatado. Então, nosso café da manhã era
omelete, ovo mexido, mingau ou granola. Já para almoço e jantar havia uma mistura de opções tradicionais com pratos mais ocidentais, como pizza e macarrão.”


Um dos clássicos locais é o dal bha, um arroz com lentilha acompanhado de legumes, e outro é o thukpa, uma sopa com macarrão e vegetais. Esses são os pratos tradicionais dos sherpas, que recomendam para os aventureiros:


“De acordo com os sherpas: dal bha dá 24 horas de energia, enquanto chocolate dá meia hora de energia. Então, melhor comer o dal bha.”


Equipamento


Uma expedição ao Everest exige equipamento específico, tanto para a caminhada no terreno quanto para suportar o clima local.


No quesito temperatura, apesar de estar na montanha, durante o dia a sensação térmica pode ser considerada amena, girando em torno de 15 a 20ºC. À medida que o sol vai caindo, o frio vai chegando. No final do dia, a temperatura bate em 5ºC, exigindo um cortavento. Quando o sol vai embora, a temperatura média desce ao negativo, chegando à casa de -15ºC nas maiores altitudes. À medida que os aventureiros vão subindo, vão somando camadas de roupa.


É possível levar tudo na mala ou adquirir itens em Kathmandu. E nem tudo você precisa comprar: é possível alugar peças de roupas e itens.


Para Cristiane, os equipamentos essenciais são duffle bag, mochila do trekking, cortavento, bota e down jacket – que levou na mala. Ela alugou o saco de dormir e uma jaqueta de pena bem grossa.

Campo Base do Everest: a experiência


E então? Será que Cristiane e o grupo conseguiram chegar no Campo Base?


Todo mundo conseguiu [chegar]. Os mais jovens iam na frente. A turma acabava se dividindo por condição física, mas todos chegaram.

Para Cristiane, o desafio foi muito além do físico. Reflexões sobre cultura, estilo de vida, consumo e meio ambiente são inevitáveis a todos que encaram destinos extremos como o Everest:


“O principal da viagem é conhecer e aprender com outras culturas, que era o que eu queria. O choque cultural, assim como ver que a gente consegue viver com menos. A gente acha que felicidade é o que a gente tem aqui. E não é. Você pode ser feliz com bem menos do que nossa sociedade faz a gente acreditar.”

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